O Perdão de Dívidas é o Caminho? Entenda o Viés do Status Quo no Crédito e Cobrança

Tenho lido o livro Dívidas: os primeiros 5.000 anos, de David Graeber, e ele tem sido uma experiência transformadora. A obra nos faz revisitar a história da dívida e sua relação com os aspectos sociais, econômicos e até morais da humanidade. Graeber nos mostra que a dívida não é apenas uma questão financeira, mas também uma construção cultural e política que moldou civilizações. Essa leitura tem me levado a refletir sobre como lidamos com as dívidas hoje e como sociedades do passado trataram essa questão. Um exemplo fascinante é a lei do Jubileu, presente na tradição bíblica, que previa o perdão de dívidas e a redistribuição de recursos. Ao mesmo tempo, é interessante observar paralelos com práticas modernas, como a exclusão de nomes de inadimplentes dos cadastros brasileiros após 5 anos.

REGULARIZAÇÃO DE DÍVIDAS

Nádia Lanny Lopes

12/30/20243 min ler

O Jubileu e o Ano Sabático na Tradição Bíblica

Na Bíblia, encontramos dois conceitos interligados que tratam diretamente da questão das dívidas: o Ano Sabático, que ocorria a cada 7 anos, e o Jubileu, celebrado no 50º ano, após sete ciclos de sete anos.

  1. O Ano Sabático:

    • O Ano Sabático está descrito em Deuteronômio 15:1-2, um dos livros da Torá e do Antigo Testamento. O Deuteronômio é um conjunto de discursos atribuídos a Moisés, que apresenta leis, princípios e orientações éticas para o povo de Israel. No capítulo 15, lemos que ao fim de cada ciclo de 7 anos, todas as dívidas deveriam ser anuladas:

      "Ao fim de cada sete anos, vocês devem cancelar as dívidas. Assim se fará o cancelamento das dívidas: todo credor perdoará o que emprestou ao seu próximo."

    • Essa prática tinha um propósito claro: impedir que pessoas e famílias fossem esmagadas por dívidas permanentes, proporcionando um ciclo de renovação econômica.

    • Também refletia um princípio ético: a vida e o bem-estar das pessoas deveriam estar acima das obrigações financeiras.

  2. O Jubileu:

    • Mencionado em Levítico 25, o Jubileu ocorria no 50º ano e ia ainda mais longe:

      • Libertação de escravos.

      • Devolução de propriedades aos seus donos originais.

      • Descanso da terra, suspendendo a agricultura.

    • O Jubileu era um momento de reequilíbrio social, garantindo que a riqueza não se concentrasse indefinidamente nas mãos de poucos.

Essas práticas não eram apenas medidas econômicas; eram formas de repensar a organização social e promover justiça em um sistema que reconhecia as desigualdades inerentes às relações financeiras.

O Cadastro de Inadimplentes no Brasil

No Brasil, a legislação estabelece que o nome de um devedor pode permanecer nos cadastros de inadimplentes, como SPC e Serasa, por até 5 anos, conforme o Código de Defesa do Consumidor (art. 43, §1º). Após esse prazo:

  • O nome deve ser retirado, mesmo que a dívida não tenha sido quitada.

  • A dívida, no entanto, continua existindo e pode ser cobrada, mas deixa de restringir o acesso a crédito.

Embora não tão abrangente quanto o perdão das dívidas no Ano Sabático, esse mecanismo reflete o mesmo princípio ético: as pessoas não devem ser punidas indefinidamente por suas obrigações financeiras. Ele oferece uma chance de recomeço, permitindo que o devedor recupere gradualmente sua posição na economia.

Paralelos e Diferenças

Semelhanças:

  1. Renovação Econômica: Tanto o Ano Sabático quanto o prazo de 5 anos no Brasil compartilham a ideia de que as pessoas precisam de uma oportunidade para recomeçar.

  2. Justiça Social: Ambos reconhecem que dívidas perpétuas podem levar a desigualdades insustentáveis, prejudicando o equilíbrio social.

Diferenças:

  1. Anulação x Suspensão:

    • No Ano Sabático, as dívidas eram anuladas ao final de 7 anos.

    • No Brasil, a dívida não é anulada, apenas deixa de ser um impeditivo formal após 5 anos.

  2. Intervalo de Tempo:

    • O Ano Sabático ocorre a cada 7 anos, enquanto o prazo no Brasil é fixado em 5 anos.

Conclusão

A leitura de Dívidas me fez refletir sobre como nossa relação com a dívida, embora profundamente enraizada em questões históricas e culturais, está fortemente influenciada pelo viés do status quo. Esse viés nos leva a preservar sistemas que tratam dívidas como obrigações inquestionáveis, perpetuando um modelo econômico que muitas vezes desconsidera as complexidades individuais de devedores e credores.

O perdão de dívidas, como no Ano Sabático, enfrenta resistência porque desafia esse status quo, sendo visto como uma ameaça à segurança jurídica do credor. No entanto, insistir na manutenção de dívidas irreparáveis ou na exclusão de soluções criativas, como renegociações mais flexíveis, programas de parcelamento e maior acessibilidade ao pagamento, não contribui para a evolução do mercado.

Repensar nossa relação com dívidas exige questionar o status quo e buscar alternativas que equilibrem justiça e eficiência. Modelos que viabilizem o pagamento, em vez de simplesmente perdoar ou punir, podem transformar o sistema, promovendo um mercado mais justo, dinâmico e sustentável para todos os envolvidos.

Referências

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em: 29 dez. 2024.
GRAEBER, David. Dívidas: os primeiros 5.000 anos. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
BÍBLIA. Deuteronômio 15:1-2. A Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br. Acesso em: 29 dez. 2024.