

O Jubileu e o Ano Sabático na Tradição Bíblica
Na Bíblia, encontramos dois conceitos interligados que tratam diretamente da questão das dívidas: o Ano Sabático, que ocorria a cada 7 anos, e o Jubileu, celebrado no 50º ano, após sete ciclos de sete anos.
O Ano Sabático:
O Ano Sabático está descrito em Deuteronômio 15:1-2, um dos livros da Torá e do Antigo Testamento. O Deuteronômio é um conjunto de discursos atribuídos a Moisés, que apresenta leis, princípios e orientações éticas para o povo de Israel. No capítulo 15, lemos que ao fim de cada ciclo de 7 anos, todas as dívidas deveriam ser anuladas:
"Ao fim de cada sete anos, vocês devem cancelar as dívidas. Assim se fará o cancelamento das dívidas: todo credor perdoará o que emprestou ao seu próximo."
Essa prática tinha um propósito claro: impedir que pessoas e famílias fossem esmagadas por dívidas permanentes, proporcionando um ciclo de renovação econômica.
Também refletia um princípio ético: a vida e o bem-estar das pessoas deveriam estar acima das obrigações financeiras.
O Jubileu:
Mencionado em Levítico 25, o Jubileu ocorria no 50º ano e ia ainda mais longe:
Libertação de escravos.
Devolução de propriedades aos seus donos originais.
Descanso da terra, suspendendo a agricultura.
O Jubileu era um momento de reequilíbrio social, garantindo que a riqueza não se concentrasse indefinidamente nas mãos de poucos.
Essas práticas não eram apenas medidas econômicas; eram formas de repensar a organização social e promover justiça em um sistema que reconhecia as desigualdades inerentes às relações financeiras.
O Cadastro de Inadimplentes no Brasil
No Brasil, a legislação estabelece que o nome de um devedor pode permanecer nos cadastros de inadimplentes, como SPC e Serasa, por até 5 anos, conforme o Código de Defesa do Consumidor (art. 43, §1º). Após esse prazo:
O nome deve ser retirado, mesmo que a dívida não tenha sido quitada.
A dívida, no entanto, continua existindo e pode ser cobrada, mas deixa de restringir o acesso a crédito.
Embora não tão abrangente quanto o perdão das dívidas no Ano Sabático, esse mecanismo reflete o mesmo princípio ético: as pessoas não devem ser punidas indefinidamente por suas obrigações financeiras. Ele oferece uma chance de recomeço, permitindo que o devedor recupere gradualmente sua posição na economia.
Paralelos e Diferenças
Semelhanças:
Renovação Econômica: Tanto o Ano Sabático quanto o prazo de 5 anos no Brasil compartilham a ideia de que as pessoas precisam de uma oportunidade para recomeçar.
Justiça Social: Ambos reconhecem que dívidas perpétuas podem levar a desigualdades insustentáveis, prejudicando o equilíbrio social.
Diferenças:
Anulação x Suspensão:
No Ano Sabático, as dívidas eram anuladas ao final de 7 anos.
No Brasil, a dívida não é anulada, apenas deixa de ser um impeditivo formal após 5 anos.
Intervalo de Tempo:
O Ano Sabático ocorre a cada 7 anos, enquanto o prazo no Brasil é fixado em 5 anos.
Conclusão
A leitura de Dívidas me fez refletir sobre como nossa relação com a dívida, embora profundamente enraizada em questões históricas e culturais, está fortemente influenciada pelo viés do status quo. Esse viés nos leva a preservar sistemas que tratam dívidas como obrigações inquestionáveis, perpetuando um modelo econômico que muitas vezes desconsidera as complexidades individuais de devedores e credores.
O perdão de dívidas, como no Ano Sabático, enfrenta resistência porque desafia esse status quo, sendo visto como uma ameaça à segurança jurídica do credor. No entanto, insistir na manutenção de dívidas irreparáveis ou na exclusão de soluções criativas, como renegociações mais flexíveis, programas de parcelamento e maior acessibilidade ao pagamento, não contribui para a evolução do mercado.
Repensar nossa relação com dívidas exige questionar o status quo e buscar alternativas que equilibrem justiça e eficiência. Modelos que viabilizem o pagamento, em vez de simplesmente perdoar ou punir, podem transformar o sistema, promovendo um mercado mais justo, dinâmico e sustentável para todos os envolvidos.
Referências
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em: 29 dez. 2024.
GRAEBER, David. Dívidas: os primeiros 5.000 anos. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
BÍBLIA. Deuteronômio 15:1-2. A Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br. Acesso em: 29 dez. 2024.